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domingo, 4 de dezembro de 2016

A humilhação de mendigar por água.

Moradores de Vertentes madrugam na fila para conseguir água.
 
– O que é mais difícil? Dormir com fome ou com sede? – Com sede é muito pior. A gente tá com fome, se deita, dorme pouco, mas dorme. Com sede, não dá. Ou eu bebo água, ou endoideço.

Diante do absurdo, Marlene responde resignada, mas firme. Ela bem sabe. É possível ter ainda menos, mesmo na ausência de tudo. Na casa onde mora, não há geladeira nem fogão. Quase não se vê comida. Mas, principalmente, não há água. O pouco que tem é esverdeada, cheiro forte, mais lama do que vida. Todos os dias, Marlene da Silva dos Santos, 48 anos, e a filha adolescente Roseane vão catar uns baldes num barreiro que nem os bichos querem mais. O mesmo reservatório que, em 2015, o Jornal do Commercio fotografou, já sujo, na periferia de Pedra, Agreste do Estado. Na época, era humilhante ver homem e bicho relegados à mesma sorte. A estiagem prolongada imprimiu à triste sina condição ainda mais desumana. Marlene e sua prole usam a lama (quem nem os bichos querem mais) para lavar prato e tomar banho. De que importa se a pele fica cinzenta ou os pratos cheiram mal? Escolher não é opção. É isso ou nada. 

Marlene já se viu muitas vezes sem arroz nem fubá no armário. Continuou sem, para poder comprar água de beber. Os R$ 575 do Bolsa Família (única renda da casa) sempre acabam antes do final do mês. “Mas eu tô com fome”, dizem filhos e netos. “Um prato de comida, você vai na casa de um parente e come. Água é mais vergonhoso pedir. E toda hora eles estão com sede. São crianças, né?”, justifica a mãe-avó. Ela mora na área mais pobre de Pedra, num bairro conhecido como Olaria. Colocaram uma caixa-d’água para socorrer os moradores, só que o reservatório vive mais vazio do que cheio. “A água que a gente pega lá é quase nada. O que ainda salva é o barreiro sujo”, diz, num agradecimento envergonhado.
Até onde uma mãe suporta ver o filho com sede? A disputa diária por água produz imagens e relatos duros.

– Eu estava com um copo na mão, aí ele mandou eu deixar de beber e dá para ele. Eu dei e fiquei com sede.

Josefa Edilza da Silva, 19, conta, rosto lavado pelas lágrimas, o diálogo mínimo, quase gestual, travado com o filho. Na casa onde mora, no município de Jataúba, os adultos precisam abrir mão da água de beber e de tomar banho em favor das crianças. Não um episódio isolado, mas fato cotidiano. Dezenove bocas para matar a sede. Muitas mulheres, uma dezena de crianças, quase nenhum homem. Socorridos da fome pelo Bolsa Família, nem sempre sobram os 40 centavos para comprar o latão da “água boa”, aquele do chafariz “que dá para beber”. No dia em que a reportagem visitou a família, no mês passado, não havia dinheiro e só restava um pouco de água nos potes, para mais dois dias. “E quando acabar?”. “Tem que esperar o Bolsa entrar. Até lá, não sei.” Josefa vive de indefinição.

Mergulhar no Agreste seco e subjugado ao carro-pipa é se deparar com um regime de exceção, em que a escassez é ainda mais desigual com os que nada (ou quase nada) têm. São os que mais sofrem, porque já sofriam antes. É humilhante ter dinheiro para comprar água e nem assim ter onde encontrá-la. Com os reservatórios da região quase todos secos, é preciso buscá-la cada dia mais longe e a um custo cada vez mais alto. Mas é ainda mais humilhante ter que mendigar por ela.

Luís Carlos olha a água da cacimba
O agricultor Luís Carlos é salvo pela água da cacimba, na área rural de Jataúba
Jataúba, a cidade onde Josefa mora com a família, não vê água nas torneiras há mais de quatro anos. Em toda a área urbana, só existem dois chafarizes para atender à população. O da “água boa” (40 centavos, a lata) e o de “água ruim”. Apesar de a cidade estar no cronograma de distribuição da Compesa, moradores afirmam que, há seis meses, os carros-pipas contratados pela empresa pararam de abastecer o município e agora é “salve-se quem puder pagar”. O motorista Joseilson Alves de Melo diz que a completa dependência da população recrudesceu na cidade uma antiga conhecida dos nordestinos: a indústria da seca. “É a velha humilhação por uma lata d’água. Se resolver o problema do abastecimento, o cidadão pobre e sofrido deixa de ser refém dos que têm o poder de escolher aonde o carro-pipa vai levar água”, critica. Para ele, a seca resiste, não por força da natureza, mas por vontade política (ou pela ausência dela). “No Nordeste, temos água. O que falta é justiça.”

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